sábado, 3 de novembro de 2007

Mandalay... continuação

Partimos em busca dos míticos Moustache Brothers, que ansiávamos há muito visitar...


É impossível visitar a Birmânia e não viver com intensidade toda a situação política e social daquele povo. É impossível não ser solidário com aquelas pessoas. É impossível também para quem está habituado desde sempre a viver em países civilizados, onde o direito à liberdade de expressão é inalienável e intocável, não ficar sensibilizado com a história desta família.

Os Moustache Brothers, são descendentes de uma trupe familiar de ópera tradicional e teatro birmanês, que durante mais de 3 décadas percorreram o país de lés a lés com as suas actuações.

A trupe é composta por 2 irmãos com um farto bigode (daí o nome),Par Par Ley e Lu Maw e pelo primo Lu Zaw (sem bigode). Conhecidos pela sua temerária oposição à junta militar, grangearam um estatuto e uma visibilidade, que lhes permite possuir hoje em dia o único local na Birmânia onde se fala de política e do governo, sempre de uma forma cómica e satírica.

Não se pense por isso, que esta fama lhes proporcionou bem estar e riqueza, bem pelo contrário, em 1996, depois de um espectáculo onde alguns generais da junta foram parodiados por estes temerários… artistas, Par Par Ley e Lu Zaw, foram presos e condenados a 7 anos de árduos trabalhos forçados, onde entre criminosos violentos e perigosos, foram obrigados a partir pedras para as estradas e a cavar valas ao bom estilo do Farwest.

Após os protestos de alguns actores de hollywood , foram libertados após cumprirem 5 anos de pena, onde ficaram impossibilitados ao longo deste tempo de receber visitas da família.

Recebem todas as pessoas a qualquer hora na sua humilde casa igual à de tantos outros birmaneses, com a alegria e simpatia de quem sabe que tem entre mãos uma missão importante a cumprir com o seu próprio país.

Embora estejam proibidos de actuar, e de ser contratados para fazer aquilo que sabem fazer à décadas, a sua tenacidade, levou-os a apresentar uma “demonstração de actuação” sem trajes e adereços, que lhes permitiram continuar “disfarçadamente” a actuar acompanhados muitas vezes de soldados representantes da junta militar munidos de câmaras de filmar.

É por tudo isto que como disse ansiávamos visitá-los porque sabendo da dignidade da sua causa e da mestria com que a concretizam, queríamos também contribuir de alguma forma.

Fomos recebidos de forma efusiva por Lu Maw, que nos pôs imediatamente à vontade, sentando-nos numa cadeira na sua minúscula casa “teatro” onde decorrem as actuações nocturnas que não tivemos o prazer de assistir. Entrar ali, é um tónico, é como retirar a mordaça que há muito nos incomoda e sentir as palavras a percorrer a mente num momento de extâse mal contido. Numa panóplia de metáforas sátiras e piadas Lu Maw, conta-nos todas as injustiças políticas e sociais que o povo birmanês sofre. Fala-nos das regalias de quem pertence à junta militar, do facto de só possuir electricidade dia sim dia não e só à noite, da “infelicidade” de não morar ninguém da junta na sua rua, daí nada estar arranjado e visivelmente degradado, das pessoas que desaparecem misteriosamente e de tantos outros factos repugnantes que constituem o dia a dia da Birmânia.


Sempre com um sorriso e numa atitude deliberadamente provocatória, desaparece por instantes entre a desarrumação de placas com escritos provocatórios, centenas de marionetas e tapetes tradicionais pendurados, cadeiras e todo o género de artigos domésticos, para nos aparecer breves instantes depois com um gigantesco maço de notas na mão. Aproximando-se com um sorriso nos lábios solta “Como podem ver eu sou rico… tenho estas notas todas… Tomem, levem como souvenir… uma, duas, três, querem mais?”. Desconfiámos desta atitude, sabendo de antemão que iríamos ser brevemente esclarecidos. O propósito desta “encenação” era dar-nos conta do que se passou alguns anos antes, onde a Junta militar, trocou de um dia para o outro a moeda do país, e todo o dinheiro que as pessoas possuíam passou de um dia para o outro a valer… zero. Nada de nada. Quem tinha dinheiro em casa e era a maioria da população, de um dia para o outro ficou sem nada.


Melhor maneira de nos mostrar, a forma de actuar da junta militar, não podia haver. Era por esta e por outras, que notoriamente orgulhoso, nos mostrou um quadro com a fotografia de Aung San Suu Kyi, prémio Nobel da paz em 1991 e líder da oposição que se encontra em prisão domiciliária até hoje e que os visitou em 2002, ano em que foram libertados da prisão o seu primo e o seu irmão.


Saímos daquele lugar humilde, com uma lição de vida na bagagem, convictos que será um lugar histórico no futuro, porque o futuro há de ser justo e há-de recompensar estas pessoas, pelo trabalho admirável que fazem pela libertação de um povo amordaçado!

Com o espírito alvoroçado e o coração palpitante, despedimo-nos dos “irmãos do bigode” e dirigimo-nos para o mosteiro Shwe In Bin Kyaung, chamado pelos locais apenas como o “Mosteiro de Teca”.


Este mosteiro secular, composto integralmente por madeira de Teca, é surpreendente quer por ser todo construído sobre estacas quer pelas intrincadas gravuras talhadas na madeira. Aqui respira-se tranquilidade e os poucos monges que se encontram no local demonstram-se bastante afáveis connosco, dando-nos explicações sobre o local. Estamos em pleno “distrito dos monges”, onde centenas de casas com túnicas cor de açafrão não deixam lugar para dúvidas quanto ao fim a que se destinam.


Esperava-nos por fim a agradável piscina do hotel que nos iria aliviar do calor intenso que se fazia sentir e permitir um pouco de descanso neste dia repleto de emoções e que ainda estava longe de estar terminado!


Nessa noite, rumámos ao teatro. Esperava-nos um espectáculo secular, um verdadeiro cartaz cultural desta região.


No pequeno anfiteatro, o espectáculo ia começar. Com uma orquestra tradicional composta por vários elementos em torno de instrumentos rudimentares, sons melancólicos e vibrantes começaram a ressoar. Dançarinas entraram para a sua actuação, que revelaria séculos de tradição, nas suas danças lentas e animistas, onde por vezes apenas um movimento de olhos representa parte da sua actuação.

Em seguida, a mestria dos movimentos aplicados às marionetes, compuseram uma das muitas histórias da Ramayana. Os movimentos das marionetes eram duma realidade impressionante, fruto das muitas possibilidades de movimento de cada marionete. A certa altura, levantaram a parte superior do palco, onde foi possível admirar os artistas que manuseavam as marionetes, e compreender, que aquela arte necessita sem dúvida de muitos anos de aperfeiçoamento para chegar aquele nível!

Satisfeitos com a nossa agenda cultural e com uma pechincha de marionete tradicional acrescentada à nossa bagagem, partimos em busca do restaurante em que tínhamos almoçado e que se localizava nas redondezas. Como se encontrava próximo, partimos a pé, não nos lembrando nós, que há sítios onde a noite é realmente escura! Depois de percorrermos ás apalpadelas algumas ruas circundantes, que não tinham propriamente um ar acolhedor e de nos cruzarmos com alguns grupos de cães vadios, com ar de poucos amigos, lá chegámos ao destino, com o apetite inflacionado por algumas descargas de adrenalina!

Acabávamos ali as nossas deambulações daquele dia fantástico e o melhor de tudo, é que o dia seguinte revelar-se-ia igualmente surpreendente!

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