sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Bagan, civilização perdida

No caminho do hotel para o aeroporto assistimos a uma cena absolutamente fascinante! Como saímos bastante cedo, vimos a saída dos monges dos templos para a petição diária de comida que vão armazenando no pote de barro que carregam nas mãos.

A fila ordenada em que seguem os monges, munidos das suas túnicas cor de açafrão é uma imagem irresistível! Percorrem as ruas batendo de porta em porta, onde os devotos já os esperam diariamente com comida cozinhada e que vão distribuindo pelos vários recipientes.

Os monges vivem totalmente da caridade do povo. Os alimentos que recebem serão ingeridos até ao meio-dia naquela que constitui a única refeição do dia. A partir daí só mesmo líquidos até ao dia seguinte.

Depois desta cena fantástica lá nos dirigimos para o aeroporto para apanhar uma “chocolateira aérea” que nos levaria até Bagan!

A primeira mudança que notámos foi no clima. Viajámos na época das monções o que significa que em Agosto chove em média 28 dias (tivemos sorte, só choveu num dia!). Em Bagan, que fica localizada na denominada “zona seca”, trocámos o clima mais húmido e quase sem sol, por um clima mais condizente com o que esperamos de umas férias numa zona tropical!

No caminho para o hotel, a paisagem mostrava-se carregada de misticismo, própria de um local com quase mil anos de história para narrar. A emoção de entrar na intimidade daquele lugar, despertou-nos os sentidos.


Entrar nas entranhas daquela civilização perdida, provavelmente uma das mais avançadas da época, que só soçobrou perante a maior potência mundial que eram os mongóis à época, transporta-nos para a sensação de êxtase que deve assaltar o espírito dos primeiros exploradores que tiveram o privilégio de a encontrar.

Ao longo da planície, milhares de pontos laranja, dispersos pela verdejante vegetação, emprestam à paisagem um cariz tão fascinante como surreal. Florescem aqui mais de 2000 templos em tijolo, por vezes coroados com uma resplandecente stupa dourada. Qualquer pintor ficaria aqui ansioso por imortalizar esta imagem numa tela. Como não fomos dotados do engenho e arte necessários a tal façanha, limitámo-nos a fazer algumas fotos, onde a beleza da paisagem se encarregou de as transformar em autênticos postais.


Ao chegarmos ao Bagan Hotel, sabíamos mesmo antes de entrar porque constava este hotel no livro “Os melhores hotéis da Ásia” da Taschen. É que ainda existem locais, que nos permitem viver literalmente a História e ali estávamos nós no meio dela!

Localizado em plena zona arqueológica, o Bagan Hotel, integrava-se perfeitamente na paisagem, todo ele também construído em tijolo similar ao dos templos e com materiais naturais, como complemento das estruturas necessárias. Existia inclusivamente um templo dentro do perímetro do Hotel. O nosso quarto encarava o Ayeyarwady, esse poderoso rio, que rasga a Birmânia de norte a sul ao longo de milhares de quilómetros até desaguar majestosamente no mar de Andamão.

A zona arqueológica é património mundial da UNESCO e o seu potencial rivaliza com o Angkor Wat em Siem Reap no Cambodja. Parece que apesar de todo este potencial, nem a UNESCO conseguiu lidar com as divergências estéticas e a autoridade imposta pela detestável junta militar. Parece que a esta formidável paisagem do século XI, queriam adicionar uma “magnífica torre de betão” para observação!!! Acabaram felizmente por não concretizar estes intentos. Conseguiram no entanto criar o museu de Bagan (que poucos visitam) instalado numa réplica bastante medíocre de um palácio de estilo europeu do século XVIII! Lindo!

Pudemos notar também que em alguns locais, existem verdadeiros atentados (felizmente muito poucos ainda) realizados à custa da mais recente descoberta na Birmânia: o betão!

Existem várias maneiras de se percorrer a zona arqueológica, que se estende por mais de 42 quilómetros quadrados. Nós optámos pela mais luxuosa… uma fantástica carroça!


Não podia ser melhor, naquela atmosfera inebriante e com a nossa consciência ecológica apaziguada, partimos acompanhados da simpatia do guia que nos levou através dos trilhos de terra avermelhada à descoberta da alma e coração de Bagan.

O que é fantástico em Bagan, é que podemos descobri-la mergulhados nesse luxo dos nossos dias que é a intimidade e a privacidade. Existem tantos templos, que a grande maioria deles não deve receber uma visita durante vários dias. Na nossa volta encontrámos mais uma vez poucos turistas, o que nos levava a cumprimentá-los num claro sinal da cumplicidade de quem sabe que pertence a um pequeno grupo de privilegiados que teve a sorte e a clarividência de escolher a Birmânia como destino.


Tirando meia dúzia de templos onde encontrámos vendedores de distintos artigos artesanais (magníficos quadros!), visitámos a grande maioria dos bucólicos templos sem ver vivalma. É impressionante não existir qualquer tipo de protecção ou vigilância sendo possível observar frescos com séculos de história tal e qual como se encontram desde a sua autoria.


Não nos esqueceremos de mais uma imagem que ficou gravada na nossa memória, onde na entrada de um templo mais majestoso, um sem fim de espanta espíritos foi “accionado”. Embalados por aquele som divinal entrámos na certeza de estarmos protegidos…


Para além das muitas estátuas de Buda, frescos de várias épocas e com várias representações e dos emblemáticos templos Ananda Phato e Sulamani Patho, houve um templo, cuja visita se revestiu de um carinho especial. Estava localizado mesmo ao lado do Ananda Patho e traduzido à letra, denominava-se mosteiro de tijolo do Ananda. Contrariamente ao que é habitual, este templo estava fechado. Nada, que alguns “Kyats”, não resolvessem.


Apareceu um estudante universitário (disse ele), que se encarregou de encontrar o velho ancião portador da chave, que abriria segundo ele a porta para alguns dos mais bens preservados frescos de Bagan! Passados alguns instantes, um velhinho de rosto tisnado e com algumas rugas que pareciam datar da fundação da cidade, desembainhou o “chavão” à antiga, tipo portão da quinta e abriu-nos caminho até uma divisão central, que se encontrava totalmente às escuras. O estudante universitário tornado guia (ou talvez o contrário!), tomou a dianteira e empunhou uma lanterna, que nos permitiria seguir a história relatada nos frescos, enquanto ouvíamos a sua esmerada locução.


As cenas descreviam o dia a dia da época e para nosso espanto, representações de portugueses no comércio com os locais e noutras empunhando intimidadoras espingardas, que devem ter impressionado e muito os locais na época. Estava ali mais uma situação, que nos fez encher de orgulho, que nos inchou o ego (informámos imediatamente o guia de que éramos portugueses!) e que nos fez lembrar, que houve realmente um dia em que fomos grandes! É que estar representados em frescos antiquíssimos no meio da Birmânia a mais de 1000 quilómetros do mar e numa altura em que éramos meia dúzia de gatos-pingados, é obra!


A cereja no topo do bolo, foi o famoso pôr-do-sol, onde o sol partilha um pouco da sua cor com a dos templos intensificando-a, e proporcionando-nos uma imagem ainda melhor da que tivemos oportunidade de apreciar ao longo do dia. No topo do terraço daquele templo, fechávamos o dia com chave de Ouro, e num misto de felicidade e apreensão abandonávamos o local sabendo que as expectativas tinham sido superadas!