Mas ainda muito se havia de passar… Para começar a manhã, à custa de um pequeno truque utilizado por nós, que nos torna recordistas de luas-de-mel, ficámos com a melhor mesa do pequeno-almoço. Na varanda entrecortada sobre o lago, calhou-nos a parte mais avançada, e a sensação era a de estarmos na realidade “dentro” do lago! Embora nebulado, o dia apresentava uma luminosidade forte e carregada que realçava o contraste entre as cores escuras do lago e o verde viçoso da vegetação circundante. A vista era magnífica e as canoas que se aproximavam de nós remadas “à perna”, tornavam-na surreal!
A excitação e a ansiedade apoderavam-se de nós à medida que víamos a nossa guia aproximar-se do cais numa canoa típica da zona. Embora soubéssemos parte do roteiro que realizaríamos nesse dia, sabíamos também por experiência própria, que a Birmânia não se contentava apenas em nos agradar. Teimava em nos surpreender, dando-nos sempre mais do que alguma vez ousaríamos pedir.
Foi neste estado de alma que embarcámos e partimos à descoberta da terra, ou melhor, da água, que constitui esse paraíso do povo intha.
A paisagem continuava a surpreender-nos. As casas construídas sobre estacas dependuravam-se sobre o lago parecendo querer espreitar os místicos templos semi-abandonados que impregnavam a atmosfera de uma religiosidade fervorosa e sempre presente. Mulheres e crianças espontâneas e inocentes, banhavam-se no lago ou lavavam as suas roupas junto à margem. Homens carregados, sulcavam as margens, transportando o sargaço para adubar os tomateiros plantados nas não menos surpreendentes ilhas flutuantes. Tudo isto nos parecia irreal, mas havia mais…
Continuando o nosso caminho, desembocámos no coração do lago, onde altares budistas com incenso a perfumar a atmosfera, despontavam das águas plácidas. Pescadores que pareciam estar ali há milhares de anos mergulhavam as suas redes colocadas numa armação elíptica de bambu, na esperança de almoçar nesse dia ou de trocar esse precioso peixe no mercado local por um pouco de carne e de arroz.
Sentindo a brisa fresca na cara, prosseguimos até entrar de novo num estreito circuito de canais onde as cenas do quotidiano se repetiam. Mais um aceno retribuído para os pequenos monges que se banhavam naquelas águas e seguimos para viver um verdadeiro momento “Indiana Jones”. No meio da densa vegetação, surgiam stupas perdidas no tempo, que nos lembravam que este lago já era habitado de longa data. Saltámos para a margem e partimos à descoberta daquele templo que mais tarde soubemos tratar-se do Shwe Inn Thein.
O avançado estado de degradação da estrutura parcialmente abandonada, acrescentava algum misticismo ao local e o facto de estarmos sozinhos, provocava-nos a ilusão de sermos os primeiros a passar por ali. Tornámo-nos obsessivos com todos os pormenores porque de alguma forma queríamos gravar todos os momentos na nossa memória.
Depois de percorrermos uma considerável extensão, onde a vegetação se confundia com as stupas abandonadas, chegámos ao edifício principal do templo. Esta ala encontrava-se activa e alguns vendedores locais tentavam atrair-nos com o seu artesanato no corredor que lhe dava acesso. Embora activo, não se pode dizer que esta parte do templo estivesse propriamente preservada, mas com os escassos recursos que possuíam, e com as doações dos poucos turistas que visitavam o local conseguiram “lavar-lhe a cara”.
A simpatia continuava a imperar e alguns monges convidaram-nos para almoçar com eles. O desejo até era grande mas um rápido olhar para as possibilidades do almoço e uma lembrança súbita da dezena de possíveis doenças que esta interessante experiência nos poderia causar, levou-nos à sensata decisão de recusar educadamente o convite. Dada a insistência dos monges, fomos obrigados a aceitar umas bananas e um género de doce, que embora tenhamos provado não chegámos a perceber o que seria.
Continuámos o percurso com a guia que se nos juntou e caminhámos por caminhos de terra batida, ladeados por uma selva de bambus gigantes, onde pelo que parece se “colhia” um pitéu bastante apreciado nesta zona. Aliás não era só nesta zona, dada a qualidade grande parte era exportada para China, onde pelo que percebemos era considerada uma verdadeira iguaria. Falo obviamente das larvas do bambu. Umas anafadas larvas brancas que se desenvolvem no interior das secções da cana de bambu. Quase todas as canas de bambu por que passávamos, mostravam as cicatrizes dessas frequentes demandas pelas desejadas larvas.
O caminho levou-nos até Indein, a povoação mais próxima, onde uma rua única, era palco do mercado local. Havia um pouco de tudo entre alimentos e artesanato onde os bens eram trocados por dinheiro com turistas e por outros bens com as gentes locais. Era curioso observar que se não fossem os turistas, o dinheiro de nada servia nesta aldeia.
Deixámo-nos andar perdidos por ali. Sentimo-nos bem entre os locais, conversando e aprendendo o seu modo de vida, observando os hábitos e a indumentária das várias etnias ali representadas. “Estão a ver, aquelas mulheres, com aquelas vestes escuras e panos coloridos sobre os ombros e sobre a cabeça? são Pa O”, dizia a nossa guia enquanto caminhávamos. Mais à frente, um pescador exibia-nos orgulhoso o resultado da sua “pescaria”, dois peixes dourados de tamanho médio cuidadosamente colocados numa cesta.
Continuando, cruzámo-nos com uma simpática mulher com uma pilha de lenha às costas e que fumava um vigoroso charuto segurando-o no espaço onde lhe faltavam alguns dentes. Entre pujantes baforadas sorria e falava connosco com a ajuda da nossa guia. A nossa guia ofereceu-lhe uma embalagem com fruta, e a mulher continuou o seu caminho visivelmente satisfeita. Nós também…
Voltando à nossa canoa, partimos em busca de mais singularidades deste lago.
Parámos numa “fábrica” de papel e das conhecidas sombrinhas. Vivendo hoje em dia à custa dos turistas que os visitam, preservam desta forma a arte ancestral do fabrico do papel artesanal. Aprendemos as várias etapas desde o fabrico da pasta de papel até à colocação desta pasta decorada com pétalas de flores, sobre uma rede fina que lhe dará a forma final. Depois é só esperar que seque e ali estava o bonito papel que há alguns anos atrás seria a única forma de preservar a cultura e a arte deste povo.
Visitámos também uma fábrica de artigos em prata oriunda das redondezas do lago. Esta fábrica, era uma espécie de centro profissional para jovens desfavorecidos, que encontravam aqui uma forma de aprenderem um ofício e garantirem desta forma a sua subsistência. Com a consciência tranquilizada em alguns artigos que adquirimos, partimos de novo, desta feita em direcção a um restaurante local, magnificamente localizado nuns terraços sobre o lago.
Foi um almoço agradável, onde duas culturas distantes se sentaram à mesma mesa. A nossa e a da nossa guia de etnia Shan. Sintonizaram-se vivências e expectativas partilhando-se formas de vida. Parte da missão daquilo que para nós é uma Viagem estava ali a ser cumprida. Por um lado pelas experiências partilhadas mas neste caso e porque a Birmânia é especial, porque dávamos a oportunidade (não ostensivamente) àquela rapariga de compreender que havia muitas coisas que ela estaria a ser privada na sua vida e a liberdade nas suas mais variadas formas, seria provavelmente a mais significativa.
Foi com bastante comedimento que o fizemos, porque o nosso objectivo, não era hostilizar estilos de vida, mas sim dar resposta à sua curiosidade natural sobre a nossa vida. Não queríamos de forma alguma deprimi-la mas sim alertar mais uma consciência que terá com certeza influência no futuro deste país que esperamos que seja bem mais risonho.
Com a alma e o estômago bem recompensados partimos em busca do local mais venerado do lago: o templo Phaung Daw Oo Paya. Cinco pequenas imagens de Buda, já disformes pelas inúmeras camadas de ouro, colocadas pelos crentes eram as personagens principais de uma lenda imemorial que alimentava espiritualmente o templo. Anualmente realiza-se uma procissão ao longo do lago, onde as estátuas são colocadas numa imponente embarcação. Reza a história que numa dessas procissões a embarcação se voltou subitamente, levando os pequenos budas ao encontro do fundo do lago. Após longas e demoradas buscas, apenas quatro imagens foram recuperadas.
Vendo que eram infrutíferas todas as tentativas de recuperar a quinta estátua, e perante a consternação geral, a população voltou ao templo no intuito de colocar as imagens que se tinham salvo nos respectivos pedestais. Para espanto de todos, verificaram que a quinta imagem estava colocada no seu pedestal original. A partir daí, esta imagem nunca mais saiu do templo, e apenas as outras quatro saem para a procissão anual.
O templo é atractivo e bem cuidado e a bonita embarcação dourada com a sua imponente cabeça de pássaro na proa, que anualmente “carrega” as estátuas, pode ser vista nas suas imediações.
Se o Phaung Daw Oo Paya era o templo mais sagrado do lago, o mais curioso era sem dúvida o Nga Hpe Chaung. Um mosteiro sobre estacas no meio do lago, com mais de 150 anos de história e integralmente construído em madeira. Estas características já seriam por si só bastante apelativas para a realização de uma visita, mas o que torna o mosteiro mais curioso, são os seus simpáticos e acrobáticos habitantes. Não, não estamos a falar dos monges que meditam no local, mas sim nos seus inúmeros gatos, que dão o nome pelo qual o mosteiro é conhecido: “Mosteiro dos gatos saltadores”.
Como dizia o Lonely Planet, parece que os monges também se aborrecem e como forma de lutarem contra o tédio, ensinaram admiravelmente os seus amiguinhos de 4 patas, que diga-se em abono da verdade não são muito obedientes por natureza (eu sei-o por experiência própria e quotidiana!), a saltar entre umas pequenas argolas empunhadas pelos monges.
Assim, que chegámos, o estilo do templo agradou-nos bastante, bem como a colecção de imagens de Buda que lá se encontrava. Mas o que mais nos ficou na memória foram as habilidades saltadoras dos gatos, habilmente coordenadas pelos sempre introspectivos monges.
O dia já ia longo e era tempo de voltar. Tal como prevíramos pela manhã, mais uma vez tínhamos sido surpreendidos, por tudo o que víramos e pela beleza indomável deste lugar, que por mais que tentemos explicar, só vivida será possível de compreender.
Estava na hora de voltar ao nosso idílico hotel. Não havia sítio melhor para melancolicamente recordarmos, já com saudade, toda esta viagem, que nos deixou marcas bem fundas na nossa alma.
São as marcas deixadas por um povo inolvidável, no sofrimento e no afecto que sempre demonstraram connosco. Na dignidade e sabedoria que possui e que nunca teve oportunidade de o demonstrar ao mundo. Pelos locais magníficos, todos eles diferentes uns dos outros. Pelo misticismo criado à volta do atraso no desenvolvimento do país que o transporta para o nosso imaginário de séculos passados e que se mantém ainda hoje bem presente. Por sabermos que não será por muito tempo que será possível visitar um país intocado pela globalização, onde os gestos são espontâneos, os trajes intemporais e onde os rituais se confundem com os livros de história.
Foi sem dúvida uma das viagens mais marcantes da nossa vida!
É inevitável pensar em todos os que nos acompanharam na nossa viagem, quando milhares de birmaneses foram mortos durante as ultimas manifestações.
Parece que o destino teima em não deixar voar os birmaneses, e é por isso que resolvemos partilhar a nossa experiência na Birmânia, para que todos saibam que o que se passa é ultrajante e injusto!
Da nossa parte e esperando que todos estejam bem, desejamo-vos a maior sorte do mundo!
Até sempre Birmânia …
2 comentários:
Aqui deixo o meu comentário, o primeiro de muitos, espero ; ).
Nem sempre tenho tempo para deixar comentários, mas vou tentar!
Bjks
Grandes fotos!!! A Birmânia é de facto um destino fantástico!
abr
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